Publicamos a última crônica inscrita no Concurso Flink Sampa de Literatura 2014, que teve como tema a escritora Carolina Maria de Jesus e sua obra "Quarto de Despejo". Aproveitamos para parabenizar aos alunos que representaram a EMEF Achilles com seus textos.
Lamúrias de um tempo antigo
Ali parada, no meio da rua, chorou.
Há muito já não tinha vida. Era uma existência
fria, vazia, plenamente exata. Não haveria reviravoltas, alegrias ou tristezas,
paixões ou desilusões; sua vida era tão previsível quanto o nascer do sol ou a
rotação da Terra.
As marcas daquela existência sofrida
escancaravam-se no seu rosto: rugas, talhos fundos em sua face, como que feitos
à navalha. Os olhos leitosos, de cor indefinida; olhos que praticamente não
enxergavam mais nada; e que, porém, já haviam visto muito. A cabeça alva que
denunciava as primaveras avançadas.
Ainda se recordava daquela rua. Com a memória,
derrubava as casas e prédios, o asfalto e a tinta; e quase conseguia
reconstruir as macieiras, o casarão, as sinhazinhas correndo pelo gramado, os
negros, indo e vindo com seus próprios afazeres, sonhos e humilhações. Não
passava de uma criança, dois ou três anos talvez.
As lágrimas escorriam sem perceber. Os carros no
tráfego pararam, mas ela não ouvia as buzinas; e sim os gritos, as lamentações,
os apelos de misericórdia de outrora. Os carros esperavam; algumas pessoas
observando no meio-fio, aquela senhorinha negra chorando as lágrimas de milhões
de antepassados.
De repente, o baque, um som oco, um corpo ao chão.
Passados cinco impressionantes segundos, um filho de Deus se dignou a
socorrê-la. A senhorinha agonizava próxima à faixa de pedestres, e em sua alma
sentia o flagelo e a desolação de milhares de antepassados.
— Minha senhora! O que está sentindo? Senhora! —
não houve resposta, mas se tivesse havido, talvez aquelas vozes de suas
memórias se juntassem à sua no grito.
Alguém conseguiu uma ambulância, e logo ela estava
sobre a maca, ainda agonizando.
— Pelo menos, não morreu ali naquela contramão,
atrapalhando o tráfego. — alguém disse depois.
Ninguém sabia seu nome ou endereço. O cadáver
mal-cheiroso era apenas pele, costelas proeminentes e joelhos ossudos. Há quem
diga que havia marcas em seus pulsos e tornozelos, marcas de algemas e
correntes. Há também quem jure que havia sangue seco em suas vestes. Apesar
disso, no óbito constava apenas ataque
cardíaco.
Ela morreu, mas o mundo continuou. Talvez ela
houvesse previsto a própria morte. Talvez tivesse ido até ali para morrer. Quem
sabe? E quem se importa? Afinal, pessoas morrem todos os dias. Ela havia ido
para junto dos seus.
(Giovana Bastos Oliveira - 9º ano B)
Para saber mais sobre Carolina Maria de Jesus:
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