domingo, 7 de dezembro de 2014

LAMÚRIAS DE UM TEMPO ANTIGO


Publicamos a última crônica inscrita no Concurso Flink Sampa de Literatura 2014, que teve como tema a escritora Carolina Maria de Jesus e sua obra "Quarto de Despejo". Aproveitamos para parabenizar aos alunos que representaram a EMEF Achilles com seus textos.

Lamúrias de um tempo antigo

Ali parada, no meio da rua, chorou.

Há muito já não tinha vida. Era uma existência fria, vazia, plenamente exata. Não haveria reviravoltas, alegrias ou tristezas, paixões ou desilusões; sua vida era tão previsível quanto o nascer do sol ou a rotação da Terra.

As marcas daquela existência sofrida escancaravam-se no seu rosto: rugas, talhos fundos em sua face, como que feitos à navalha. Os olhos leitosos, de cor indefinida; olhos que praticamente não enxergavam mais nada; e que, porém, já haviam visto muito. A cabeça alva que denunciava as primaveras avançadas.

Ainda se recordava daquela rua. Com a memória, derrubava as casas e prédios, o asfalto e a tinta; e quase conseguia reconstruir as macieiras, o casarão, as sinhazinhas correndo pelo gramado, os negros, indo e vindo com seus próprios afazeres, sonhos e humilhações. Não passava de uma criança, dois ou três anos talvez.

As lágrimas escorriam sem perceber. Os carros no tráfego pararam, mas ela não ouvia as buzinas; e sim os gritos, as lamentações, os apelos de misericórdia de outrora. Os carros esperavam; algumas pessoas observando no meio-fio, aquela senhorinha negra chorando as lágrimas de milhões de antepassados.

De repente, o baque, um som oco, um corpo ao chão. Passados cinco impressionantes segundos, um filho de Deus se dignou a socorrê-la. A senhorinha agonizava próxima à faixa de pedestres, e em sua alma sentia o flagelo e a desolação de milhares de antepassados.

— Minha senhora! O que está sentindo? Senhora! — não houve resposta, mas se tivesse havido, talvez aquelas vozes de suas memórias se juntassem à sua no grito.

Alguém conseguiu uma ambulância, e logo ela estava sobre a maca, ainda agonizando.

— Pelo menos, não morreu ali naquela contramão, atrapalhando o tráfego. — alguém disse depois.

Ninguém sabia seu nome ou endereço. O cadáver mal-cheiroso era apenas pele, costelas proeminentes e joelhos ossudos. Há quem diga que havia marcas em seus pulsos e tornozelos, marcas de algemas e correntes. Há também quem jure que havia sangue seco em suas vestes. Apesar disso, no óbito constava apenas ataque cardíaco.

Ela morreu, mas o mundo continuou. Talvez ela houvesse previsto a própria morte. Talvez tivesse ido até ali para morrer. Quem sabe? E quem se importa? Afinal, pessoas morrem todos os dias. Ela havia ido para junto dos seus.
(Giovana Bastos Oliveira - 9º ano B)

Para saber mais sobre Carolina Maria de Jesus:

Nenhum comentário:

Postar um comentário